Compensações Multilaterais: Conheça a Solução Técnica para o Comércio Sem Dólar entre os BRICS
O Futuro das Transações Multilaterais no BRICS
Como o bloco econômico está revolucionando o comércio internacional e desafiando o sistema financeiro tradicional

1.O desafio do comércio em moedas locais
Nas últimas décadas, o dólar americano reinou absoluto como moeda dominante no comércio internacional. Seja no petróleo, nos grãos ou em componentes industriais, quase todas as transações globais são precificadas e liquidadas em dólar.
No entanto, esse sistema vem sendo questionado com intensidade crescente, especialmente após eventos recentes como as sanções ocidentais contra Rússia, Irã, Venezuela e agora, crescentes tensões com a China.
Diante desse cenário, países emergentes estão buscando formas alternativas de negociar sem depender do dólar, tanto por motivos geopolíticos quanto econômicos.
O que parecia uma ideia distante no passado, agora ganha contornos reais por meio de acordos bilaterais em moedas locais.
Em 2023 e 2024, Brasil e China assinaram acordos para permitir que empresas realizem transações em real e yuan, evitando conversões para dólar. Índia e Rússia também avançaram em trocas diretas entre rupia e rublo, especialmente no setor energético.

Brasil
Maior economia da América Latina

Rússia
Grande exportador de energia

Índia
Economia em rápido crescimento

China
Segunda maior economia mundial

África do Sul
Portal para o continente africano
No entanto, o comércio bilateral em moeda local enfrenta um desafio técnico crucial: o desequilíbrio nos fluxos comerciais.
Por exemplo, se o Brasil exporta soja e carne para a China e recebe pagamento em yuan, mas não importa o suficiente de produtos chineses para gastar esse saldo, acaba acumulando uma moeda que não pode reinvestir facilmente em outro parceiro comercial, como a Rússia. O mesmo ocorre no sentido inverso, gerando uma ineficiência estrutural.
Essa situação cria um problema de liquidez e reinvestimento. Como esses países não possuem mercados profundos ou totalmente conversíveis de suas moedas (como o dólar ou o euro), o acúmulo de moedas locais pode gerar fricções no comércio multilateral, prejudicando a fluidez das cadeias de suprimento e reduzindo o incentivo ao uso de moedas não-hegemônicas.
🧩 A solução emergente: compensação multilateral via índice de valor comum
Para resolver esse impasse, os países do Sul Global — liderados pelos BRICS — estão discutindo uma infraestrutura de compensação multilateral, baseada em um índice de conversão comum.
Esse índice, ou unidade de conta digital, funcionaria como uma "moeda de referência" entre os países participantes, permitindo que um país convertesse seus saldos acumulados em uma moeda local para esse índice e, a partir dele, liquidasse pagamentos com terceiros.
Voltando ao exemplo: o Brasil poderia converter seus yuans acumulados em uma unidade digital multilateral e, com ela, comprar gás da Rússia, que receberia o valor convertido em rublos.
Esse tipo de "troca circular compensada" resolveria o problema da bilateralidade limitada e abriria espaço para uma rede de comércio regional ou global mais fluida, sem a necessidade do dólar como intermediário.
Essa é a base do que os especialistas estão chamando de "Sistema de Compensação Multilateral com Unidade de Conta Digital" — uma solução tecnicamente viável, geopoliticamente relevante e cada vez mais presente nos fóruns dos BRICS, do G77 e de plataformas emergentes como o projeto mBridge liderado por China, Emirados Árabes e BIS.
À medida que a desdolarização avança, a construção de uma infraestrutura confiável e interoperável para liquidação multilateral se torna o próximo passo estratégico rumo a uma economia global verdadeiramente multipolar.
2. Como funcionam os sistemas de compensação multilateral
A ideia de compensação multilateral, também chamada de multilateral clearing, é um mecanismo já conhecido no mundo das finanças internacionais.
Ela consiste basicamente em liquidar obrigações comerciais entre vários países de forma cruzada, de modo que apenas os saldos líquidos finais precisem ser transferidos em moeda forte ou unidade de referência.
🔁 A lógica da compensação: um exemplo simples
Imagine três países — Brasil, China e Rússia — que estão realizando comércio entre si com suas próprias moedas:
- O Brasil exporta soja para a China e recebe yuan.
- A China compra gás da Rússia e paga em rublos.
- E a Rússia importa carne bovina do Brasil e paga em reais.
Se cada um desses países quiser converter suas moedas para dólar antes de fazer qualquer transação, cria-se um ciclo custoso, lento e dependente da disponibilidade de dólar.
Mas se esses três países participarem de uma câmara de compensação multilateral, os fluxos são ajustados entre si e apenas os saldos finais são liquidados — com menor necessidade de conversões cambiais e, muitas vezes, sem envolver o dólar.
🧩 Resultado final: cada país pode usar a moeda local de seus parceiros e não precisa convertê-la individualmente para uma moeda global (como o dólar).
No final de um ciclo (mensal, trimestral), o sistema calcula quem deve quanto a quem e apenas esses saldos são transferidos — seja em moeda forte, unidade de conta ou até por crédito automático entre bancos centrais.
🏛️ Inspiração histórica: ALADI e FMI
Esse modelo não é novo. Já foi implementado com sucesso em outras regiões e contextos:
🟢 ALADI (Associação Latino-Americana de Integração)
- Criou em 1982 o Sistema de Pagamentos em Moeda Local, operado pelo Banco Central do Brasil e outros bancos centrais da região.
- Facilitava as exportações e importações entre países latino-americanos sem uso de dólar.
- As transações eram compensadas ao final de um ciclo, com liquidação apenas dos saldos líquidos.
🟦 FMI – Special Drawing Rights (SDRs)
- O FMI criou, em 1969, os Direitos Especiais de Saque (SDRs), uma unidade de conta baseada em uma cesta de moedas globais (hoje composta por dólar, euro, yuan, iene e libra).
- Embora os SDRs não sejam uma moeda de circulação geral, são usados como instrumento de compensação entre bancos centrais e podem ser convertidos em qualquer das moedas da cesta.
- O conceito dos SDRs é uma referência direta para os modelos de unidade de conta multilateral que os BRICS e o G77 estão começando a desenhar.
🧠 Vantagens do sistema de compensação multilateral
- Redução de custos com câmbio e spreads cambiais.
- Diminuição da dependência de uma terceira moeda (como o dólar).
- Agilidade na liquidação de pagamentos entre países com fluxos comerciais ativos.
- Estímulo ao comércio regional ou entre blocos com maior autonomia financeira.
- Segurança jurídica e monetária se for operado por bancos centrais e com liquidez garantida.
🌐 E no presente? Os novos projetos em andamento
Em 2024, vários blocos voltaram a discutir o modelo de compensação multilateral com base digital:
- BRICS: Estudo em curso sobre uma infraestrutura de liquidação digital, com uma unidade de conta lastreada em moedas locais e commodities estratégicas (ex: ouro, petróleo e grãos).
- Projeto mBridge (BIS + China + Emirados Árabes + Hong Kong + Tailândia): Está testando o uso de CBDCs para liquidação entre bancos centrais, com foco justamente na compensação cruzada de saldos em comércio bilateral e trilateral.
- SCO (Organização de Cooperação de Xangai): Estuda formas de integração de sistemas locais de pagamentos e compensação entre seus membros.
A Plataforma BRICS Pay
Crescimento do Comércio em Moedas Locais (2015-2023)
A compensação multilateral é uma alternativa viável, historicamente validada e tecnologicamente possível para enfrentar os limites do comércio em moeda local.
Com o avanço da digitalização das finanças e da coordenação entre países do Sul Global, esse modelo pode ser a chave para destravar o comércio entre nações que hoje buscam fugir do dólar — sem depender de uma moeda global substituta.
3. A proposta dos BRICS: um índice de conversão comum
À medida que os acordos bilaterais em moedas locais se intensificam — como Brasil-China, Índia-Rússia ou África do Sul-China — torna-se evidente a necessidade de um sistema técnico que interligue essas moedas e resolva o problema da conversão cruzada.
É exatamente nesse contexto que surge a proposta dos BRICS, avançada especialmente em 2024: a criação de uma "unidade de conta digital multilateral".
Essa unidade não é uma nova moeda no sentido tradicional, tampouco pretende circular entre cidadãos ou substituir moedas nacionais.
Trata-se de um instrumento técnico de conversão, que serviria como índice de referência entre as moedas dos países participantes, e permitiria a liquidação multilateral de transações comerciais.
🧭 O que está sendo discutido pelos BRICS?
Nas reuniões de 2023 (África do Sul) e 2024 (Rússia), os BRICS oficializaram um grupo de trabalho técnico com objetivo de:
- Estudar a criação de uma infraestrutura de liquidação e compensação entre bancos centrais, usando tecnologias digitais;
- Desenvolver uma unidade de conta digital que funcione como referência de valor;
- Discutir o lastro ideal dessa unidade: inicialmente baseada em moedas locais, mas com possibilidade de incluir commodities estratégicas como ouro, petróleo, gás natural, fertilizantes e grãos;
- Integrar essa infraestrutura a sistemas como o CIPS da China, o SPFS da Rússia e futuras plataformas de CBDCs.
🔗 Como funcionaria na prática?
Imagine que o Brasil exporte soja para a China e receba yuans. No modelo atual, esses yuans são de difícil utilização fora da relação bilateral. Mas com a unidade de conta BRICS, o Brasil poderia:
- Converter seus yuans recebidos em "Unidades BRICS" (nome fictício para o índice multilateral);
- Usar essas unidades para comprar gás natural da Rússia, que receberia o pagamento em rublos — convertidos automaticamente pelo sistema;
- Tudo isso seria registrado e processado digitalmente por uma plataforma de liquidação multilateral entre bancos centrais, com compensações cruzadas.
Esse sistema elimina a necessidade de passar pelo dólar ou por qualquer moeda ocidental e cria um ecossistema interno de liquidez e confiança entre os países membros.
⚖️ Lastro e composição do índice
A proposta mais recente sugere que essa unidade seja lastreada por uma cesta híbrida composta por:
- Moedas locais: yuan, real, rublo, rúpia, rand, etc.
- Commodities de valor estratégico: ouro, petróleo, gás natural, trigo, fertilizantes.
- Possibilidade de incorporar ativos digitais tokenizados, como reservas estratégicas em blockchain.
Essa cesta conferiria estabilidade, credibilidade e referência objetiva de valor ao índice, funcionando de forma similar ao SDR do FMI, mas com maior aderência às realidades comerciais e geoeconômicas dos BRICS.
🛠️ Modelos possíveis para a implementação
Modelo SDR aprimorado (tipo FMI)
- A unidade funciona como referência contábil.
- Cálculos de liquidação são feitos com base na cesta.
- É usada apenas entre bancos centrais e instituições autorizadas.
Moeda digital interna (sem circulação pública)
- Similar a um sistema de CBDC interbancária.
- Utilizada apenas entre bancos centrais para liquidação de saldos multilaterais.
- Pode operar em paralelo com os sistemas locais (Pix, CIPS, UPI, etc.).
Sistema baseado em blockchain
- Transparente, rastreável, seguro.
- Permite auditoria automatizada entre participantes.
- Reduz a necessidade de instituições financeiras intermediárias.
- Facilita integração com futuras tokenizações de ativos reais.
📈 Por que isso importa?
O grande diferencial dessa proposta é que ela resolve três obstáculos centrais da desdolarização técnica:
- Conversibilidade limitada das moedas locais
- Acúmulo de saldos não reinvestíveis em comércio bilateral
- Falta de uma referência confiável para acordos multilaterais
Além disso, ela cria a base de uma infraestrutura financeira paralela ao sistema ocidental, dando aos países do Sul Global uma alternativa para comércio seguro, rápido e independente de pressões políticas ou sanções econômicas.
4. Benefícios para os países participantes
À medida que blocos como os BRICS, a Organização de Cooperação de Xangai (SCO) e o G77 avançam na construção de sistemas de compensação multilateral e liquidação em moedas locais, os países envolvidos começam a colher uma série de benefícios estruturais e estratégicos.
Esses ganhos vão além da esfera geopolítica e se estendem ao campo técnico, financeiro e comercial — com destaque especial para as nações emergentes do Sul Global.
💸 1. Redução da dependência do dólar
O principal e mais imediato benefício de um sistema alternativo de pagamentos é a redução da exposição ao dólar americano.
Desde a Guerra Fria, o dólar tem sido usado não apenas como unidade de troca, mas como instrumento de poder político.
Sanções econômicas dos EUA, como as aplicadas contra Rússia, Irã, Venezuela e, mais recentemente, ameaças à China, mostraram como o controle sobre a moeda global pode ser usado como arma financeira.
Com a implementação de sistemas de compensação multilateral e unidades de conta próprias, países ganham liberdade para negociar sem risco de bloqueio, congelamento de ativos ou exclusão de sistemas como o SWIFT.
📊 2. Estabilidade cambial em acordos bilaterais e multilaterais
Ao utilizar moedas locais atreladas a uma unidade de conta digital comum, os países mitigam o impacto de volatilidades cambiais externas.
Por exemplo, em vez de depender da flutuação do dólar ou do euro, os fluxos comerciais passam a ser balizados por uma cesta de moedas e/ou ativos estratégicos (como petróleo, ouro, fertilizantes), o que garante maior previsibilidade e equilíbrio nas transações internacionais.
Além disso, esse sistema favorece acordos de longo prazo com condições financials mais estáveis, o que é crucial para setores estratégicos como energia, defesa e infraestrutura.

🏛️ 3. Maior autonomia monetária e soberania financeira
Historicamente, países emergentes têm enfrentado a chamada "armadilha da dependência cambial", onde precisam manter grandes reservas em dólar para garantir estabilidade.
Isso impõe limites ao uso da política monetária doméstica, muitas vezes sacrificando o crescimento interno para manter a confiança externa.
Com um sistema de compensação multilateral, os países ganham soberania sobre suas decisões monetárias, já que podem transacionar em moedas locais e converter via unidade de valor regional, sem recorrer aos grandes centros financeiros ocidentais.
Esse movimento reforça a ideia de uma infraestrutura financeira descentralizada e multipolar, onde cada país pode desempenhar um papel ativo sem subordinação a potências monetárias tradicionais.
🌍 4. Otimização dos fluxos comerciais entre países do Sul Global
Muitos países do Sul Global já possuem cadeias de suprimento complementares, mas enfrentam barreiras cambiais e financeiras para ampliar o comércio entre si.
Com a adoção de uma infraestrutura digital multilateral:
- Os fluxos comerciais são agilizados, já que as compensações são feitas em tempo real ou em ciclos curtos;
- É possível usar créditos acumulados em uma moeda para importar de terceiros, facilitando o comércio triangular ou quadrilateral;
- Países que antes eram dependentes de conversão para dólar podem operar com maior eficiência logística e financeira.
A tendência é a criação de "zonas de comércio com liquidação direta", semelhantes ao que ocorre hoje na União Europeia com o euro, mas sem a necessidade de uma moeda única formal.
⚙️ 5. Custos menores de transação e liquidação em tempo real
O modelo tradicional baseado no SWIFT e no dólar envolve:
- Taxas de intermediação bancária;
- Prazos longos de liquidação (às vezes 2 a 5 dias úteis);
- Spread cambial elevado;
- Risco de compliance e sanções por critérios políticos externos.
Ao substituir esse modelo por infraestruturas digitais descentralizadas — muitas vezes baseadas em blockchain ou redes de bancos centrais (CBDCs) — os países conseguem:
- ✅ Reduzir drasticamente os custos por transação;
- ✅ Eliminar intermediários financeiros desnecessários;
- ✅ Liquidar operações quase em tempo real com rastreabilidade e segurança;
- ✅ Aumentar a transparência e auditabilidade, especialmente entre bancos centrais.
Esses benefícios não são apenas projeções teóricas — já estão sendo experimentados em piloto por iniciativas como o Projeto mBridge e pelo avanço da integração entre SPFS (Rússia), CIPS (China) e sistemas nacionais dos BRICS.
À medida que esses mecanismos ganham escala e robustez, é provável que países fora do eixo G7 passem a adotar esse novo modelo como padrão para comércio estratégico, acordos energéticos e cooperação financeira.
5. Desafios técnicos e políticos
Embora a ideia de um sistema de compensação multilateral com unidade de conta digital entre os BRICS e países do Sul Global seja promissora e venha ganhando força, ela também enfrenta desafios importantes — tanto técnicos quanto políticos.
A complexidade de redesenhar parte da arquitetura financeira global não está apenas na tecnologia, mas, sobretudo, na governança, confiança e assimetrias estruturais entre os participantes.
🏦 1. Necessidade de governança compartilhada entre bancos centrais
Para que um sistema multilateral funcione de forma fluida, é fundamental haver uma estrutura de governança sólida, transparente e equilibrada entre os países participantes. Isso significa:
- Definir regras claras sobre quem supervisiona o sistema;
- Estabelecer responsabilidades recíprocas entre os bancos centrais;
- Criar mecanismos de arbitragem e resolução de disputas comerciais ou cambiais;
- Garantir neutralidade política e técnica no cálculo da unidade de conta digital.
Esse desafio é particularmente sensível porque os países do BRICS têm níveis diferentes de abertura econômica, regimes cambiais e políticas monetárias. A China, por exemplo, mantém controle rígido sobre a movimentação de capitais, enquanto o Brasil tem câmbio flutuante e alta volatilidade.
Chegar a um consenso entre essas diferenças exige cooperação pragmática e flexibilidade política, algo nem sempre fácil de obter.

🕵️ 2. Questões de transparência, confiança e interoperabilidade
Mesmo com o avanço das tecnologias como blockchain e CBDCs, ainda há desconfiança entre os participantes quanto à real transparência e rastreabilidade das operações.
- Será que todos os países permitirão auditoria cruzada dos saldos e fluxos?
- Os dados estarão realmente disponíveis em tempo real para os bancos centrais?
- Haverá padronização técnica suficiente para que os sistemas de cada país possam se integrar com fluidez?
Além disso, alguns membros — especialmente Índia e África do Sul — têm expressado preocupação sobre a predominância tecnológica e financeira da China e da Rússia nesse tipo de iniciativa.
Isso levanta dúvidas sobre a interoperabilidade real e sobre o risco de hegemonias internas dentro do bloco.
⚖️ 3. Riscos de assimetria comercial persistente
Outro grande desafio é que os fluxos comerciais entre os países não são equilibrados. Há países estruturalmente superavitários (como China e Rússia em energia e manufaturas) e outros estruturalmente deficitários (como Índia ou Brasil, em alguns setores).
Esse desequilíbrio pode fazer com que:
- Alguns países acumulem permanentemente saldos positivos na unidade de conta;
- Outros fiquem constantemente em dívida, o que pode gerar tensão política e questionamentos sobre a equidade do sistema.
Além disso, sem mecanismos robustos de redistribuição ou financiamento de déficits estruturais (como faz a União Europeia com seus fundos de coesão), o sistema corre o risco de reproduzir novas dependências em vez de superá-las.
💰 4. Ausência de um lastro forte que substitua a credibilidade do dólar
Talvez o maior desafio de todos: a confiança global no dólar foi construída ao longo de décadas, baseada em:
- Profundidade do mercado financeiro americano;
- Estabilidade institucional dos EUA;
- Liquidez quase ilimitada dos títulos do Tesouro;
- E claro, força militar e influência global.
Nenhuma outra moeda ou unidade de conta possui ainda esse grau de liquidez, aceitação global e segurança jurídica.
Por mais que o novo sistema proposto pelos BRICS utilize uma cesta de moedas e commodities para gerar valor, ele ainda não é testado em larga escala, nem reconhecido formalmente por organismos multilaterais como o FMI ou o BIS.
Além disso, mesmo commodities como ouro ou petróleo enfrentam volatilidade, problemas logísticos e risco geopolítico, o que limita sua capacidade de funcionar como "garantia estável" de um sistema monetário novo.
Os desafios que se colocam à frente do projeto dos BRICS não anulam seu potencial, mas indicam que a construção de uma nova ordem financeira multipolar será gradual, complexa e sujeita a tensões internas.
A chave para o sucesso desse sistema está na engenharia institucional, na confiança mútua e na capacidade de criar uma arquitetura digital interoperável, transparente e funcional — algo que poucos blocos conseguiram até hoje.
6. Projetos e testes em andamento (2024–2025)
O avanço da desdolarização e a busca por alternativas ao SWIFT e ao dólar não são apenas ideias teóricas ou declarações políticas — já estão sendo testadas em campo por meio de iniciativas concretas, multilaterais e altamente estratégicas.
De CBDCs a câmaras de compensação digitalizadas, diversos blocos e países estão lançando pilotos que pavimentam o caminho para uma nova arquitetura financeira internacional.
🟡 1. Grupo de Trabalho dos BRICS sobre moeda de compensação (oficializado em 2024)
Durante a cúpula dos BRICS realizada em Kazan (Rússia), em junho de 2024, os líderes do bloco — agora incluindo oficialmente países como Egito, Etiópia e Irã — criaram um Grupo Técnico Permanente para desenvolver uma infraestrutura de compensação baseada em uma unidade de conta comum.
Esse grupo:
- É coordenado pelos bancos centrais dos países fundadores (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul);
- Está estudando modelos híbridos inspirados no SDR do FMI, mas com lastro adicional em commodities estratégicas (como ouro, petróleo e gás natural);
- Analisa a viabilidade de uma moeda digital interbancária que funcione apenas entre bancos centrais, sem circulação civil.
Segundo declarações oficiais de Lavrov (Rússia) e do Banco Central da China, os primeiros testes técnicos entre sistemas bancários começam em dezembro de 2025, com integração piloto prevista entre Rússia, China e Índia.
🟢 2. Projeto mBridge: BIS + China + EAU + Tailândia + Hong Kong
O Projeto mBridge, liderado pelo BIS Innovation Hub e em cooperação com China (via PBoC), Tailândia, Emirados Árabes Unidos e Hong Kong, é um dos testes mais avançados de CBDCs interbancárias para liquidação transfronteiriça.
Até junho de 2025:
- Já foram executadas mais de 160 mil transações simuladas entre bancos centrais e bancos comerciais dos países envolvidos;
- A plataforma permite liquidação instantânea entre moedas distintas utilizando versões digitais das moedas nacionais (e-CNY, e-dirham, etc.);
- Funciona sobre uma infraestrutura baseada em blockchain permissionado, que garante segurança, transparência e rastreabilidade.
Em comunicado conjunto com o FMI, o projeto mBridge foi descrito como um "marco técnico para redefinir o comércio internacional sem necessidade de moeda dominante única".
🔴 3. Integração entre CIPS (China), SPFS (Rússia) e sistemas do Sul Global
Desde as sanções mais duras contra a Rússia em 2022, Moscou e Pequim têm acelerado a integração de seus sistemas nacionais de pagamentos:
- O CIPS, que é a resposta chinesa ao SWIFT, bateu recordes em 2024, com mais de 30% das transações sino-africanas já ocorrendo fora do SWIFT;
- O SPFS, sistema russo, tem se expandido para países como Irã, Índia, Belarus, Cuba e Emirados Árabes;
- Em 2025, começou um piloto de interconexão direta entre o SPFS e o CIPS, com objetivo de criar um "corredor de liquidação financeira" que permita compensações bilaterais e multilaterais em moedas locais — inclusive com conexão ao rublo digital e ao yuan digital.
Essa integração será essencial para dar escala à unidade de conta dos BRICS e permitir a interoperabilidade de sistemas financeiros fora da órbita do dólar e do SWIFT.

🟠 4. Estudos e iniciativas do G77 e da Organização de Cooperação de Xangai (SCO)
Além dos BRICS, outras alianças do Sul Global também estão se mobilizando:
- O G77, que reúne mais de 130 países em desenvolvimento, criou em 2024 um comitê de estudo para compensações multilaterais com moedas locais, especialmente em transações de energia e alimentos.
- A Organização de Cooperação de Xangai (SCO) — que reúne China, Rússia, Índia, Irã, Paquistão, Uzbequistão e outros — iniciou testes para liquidação de acordos regionais usando moedas locais e evitando o dólar.
Esses blocos estão se aproximando dos BRICS para formar uma macro-rede de compensação financeira multipolar, com intercâmbio de tecnologia e padronização de protocolos.
Entre 2024 e 2025, o mundo assistiu a um salto qualitativo na construção de alternativas ao sistema tradicional de pagamentos internacionais.
O que antes eram apenas discursos em cúpulas agora se concretiza em projetos pilotos, integração de sistemas e acordos técnicos entre bancos centrais de países emergentes.
A questão não é mais "se" haverá um novo sistema financeiro internacional, mas "quando" ele alcançará massa crítica suficiente para desafiar efetivamente o domínio do dólar e do SWIFT.
7. Projeções para 2030: um sistema financeiro multipolar baseado em compensações digitais
Olhando para a próxima década, as tendências atuais indicam que o mundo caminharia para um sistema financeiro verdadeiramente multipolar, no qual a centralidade do dólar será significativamente reduzida, e os mecanismos de compensação digital entre moedas locais — como os propostos pelos BRICS — ganharão escala e profundidade.
Crescimento dos acordos comerciais lastreados em moedas locais
Nos próximos anos, é esperado que mais países adotem acordos bilaterais e multilaterais com liquidação em moedas locais — especialmente entre países emergentes e do Sul Global, que buscam reduzir vulnerabilidades associadas à volatilidade e hegemonia do dólar.
Esse movimento será facilitado pela disseminação de unidades de conta digitais comuns, que funcionarão como "pontes" entre moedas diferentes, garantindo maior fluidez e previsibilidade nas transações internacionais.
Diminuição da demanda por dólar para comércio global
Com o fortalecimento dessas redes alternativas, a demanda por dólares como moeda de reserva e liquidação irá recuar nos fluxos comerciais entre países fora do Ocidente tradicional.
Ainda que o dólar não desapareça, sua predominância será limitada a relações comerciais que envolvam Estados Unidos e aliados, enquanto blocos como BRICS, SCO e G77 operarão predominantemente em suas próprias moedas e unidades digitais.
Adoção gradual de uma infraestrutura financeira paralela
Essa nova arquitetura financeira será formada por uma infraestrutura paralela ao sistema ocidental, baseada em tecnologias emergentes como blockchain, CBDCs e sistemas integrados de compensação multilaterais.
Ela proporcionará maior autonomia, resiliência e segurança a seus participantes, e representará um passo decisivo rumo a uma governança financeira global mais distribuída e democrática.
O papel das CBDCs como ferramenta de liquidação
As Moedas Digitais de Bancos Centrais (CBDCs) serão o componente tecnológico fundamental para viabilizar essa infraestrutura.
CBDCs permitirão a liquidação instantânea e segura dos saldos comerciais multilaterais, eliminando intermediários e reduzindo custos.
Assim, embora as moedas físicas e tradicionais continuem existindo, a liquidação e a compensação em nível interbancário ocorrerão cada vez mais por meio digital, reforçando a dinâmica multipolar.
8. Para fixar como Osmose: O próximo estágio da desdolarização é técnico — e já começou
O que estamos testemunhando não é apenas um jogo político entre potências, mas uma transformação profunda na arquitetura financeira global, impulsionada por avanços tecnológicos e cooperação entre países que buscam autonomia econômica.
A compensação multilateral e os sistemas digitais alternativos representam o próximo estágio da desdolarização: não mais um simples discurso, mas uma engenharia financeira alternativa que desafia o sistema tradicional em sua base.
Reflexão final
E se o dólar continuar reinando...
mas com cada vez menos convidados à sua mesa?
Essa é a questão que abre o futuro das finanças globais — e o momento é de atenção e adaptação para todos os players do mercado.
Quer saber mais?
Entenda como as compensações multilaterais entre os BRICS estão redesenhando a macroeconomia global ao reduzir a dependência do dólar
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